Publicado em novembro 21st, 2017 | por Emmanuel Deodato
Imersão BG: Jórvík e a outra face da vida viking
Fala galera! Hoje iremos presenciar a outra face da vida viking, afinal, o dia a dia não era apenas batalha, sangue e saques. Isso mesmo, os vikings vão muito além de seus Deuses ou do seu desejo por terras e bens (além de outras coisas). Desenvolva uma vila viking no seu apogeu e com sua atividade mais comum: o comércio. Essa é a premissa de Jorvík, do designer Stefan Feld, jogo lançado este ano pela Conclave Editora.
Para entender Jórvík e todo o seu tema é preciso se soltar das amarras culturais que nos limitam: a história dos viking não se resume à mitologia nórdica (cai fora Thor!). Nem mesmo às batalhas e saques (cai fora você também Ragnar!). Na verdade, a principal atividade dos vikings era o comércio! Sim, a base da vida viking era comercializar seus produtos (devia rolar uns saques) e realizar trocas. Com essas informações, você verá que Jórvík foi injustiçado ao ser tratado como “não temático”, assim como outros jogos do Feld (não é mesmo Trajan?).
O dia a dia viking: comércio e trocas
A base da vida viking, por mais que surpreenda alguns, era o comércio. O dia a dia das vilas vikings se concentrava na comercialização e na troca de produtos. Com o aumento crescente dos saques após a expansão viking, esse comércio se tornou mais evidente, importante e pontual para as vilas.
Prata e ouro eram utilizados como moeda para o pagamento, mas, também se realizava o escambo por produtos ou serviços. Ao contrário do que possa se pensar, muitos vikings trabalhavam como fazendeiros, artesãos e comerciantes.
As mercadorias trazidas do além mar, como tecidos, metais diversos, jóias, pedras preciosas e roupas eram revendidas pelos mercadores. Todos esses itens eram bastante atrativos aos olhos dos vikings, principalmente de sua camada mais abastada.
As vilas vikings
No tabuleiro de Jórvík temos a representação de uma Vila Viking (mais detalhes históricos sobre o nome e afins a seguir). As vilas vikings eram construídas costumeiramente próximas a rios. Isso facilitava a navegação, impulsionando o comércio e a vinda de mercadorias de outros pontos do mundo.
Algumas vilas se tornavam grandes o suficiente para comportarem uma pequena rotina de cidade, outras se mantinham como pequenas fazendas. Mas tudo se integrava no mercado da vila, onde os produtos eram levados para serem negociados.
No tabuleiro é possível observar dois pontos de comércio (jogando no modo Jarl): o primeiro ponto está no que aparenta ser o mercado da vila. O outro ponto, no recebimento de mercadorias pelos navios. Imagine um porto rudimentar, com vikings e muito hidromel. Bem, é o que acontecia e o que podemos ver em Jórvík.
Mas o que significa Jórvík?
A York Escandinava, ou Jórvík, é um termo utilizado para apontar a Northumbria (Yorkshire) durante a dominação viking na região. Sendo mais específico, o termo se refere à cidade de York, também sob o poder dos vikings. Tudo isso ocorrendo durante os séculos 9 e 10. Assim, o tabuleiro do jogo além de apresentar uma vila viking, utiliza-se da história para delinear a antiga cidade dominada.
O controle de York pelos vikings se iniciou próximo ao ano 875 e perdurou até o ano 954. Foi quando o último rei viking, Eric Bloodaxe (nome certamente vindo das habilidades comerciais do mesmo) fora expulso pelo império anglo-saxão. Após esse acontecimento, a região, bem como a cidade mencionada, foram retomadas sob controle da Inglaterra.
Mas, não só de vikings é lembrada a bela York. A cidade é o local de nascimento e crescimento do famoso Guy Fawkes. Personagem mais conhecido por sua máscara e aparições do seu rosto em filmes como V de Vingança (lembrando o V de viking) e hackers da internet.
Modo Jarl, Karl e o que mais?
Bem, as palavras Jarl e Karl aparecem no manual do jogo e se referem aos modos possíveis de se jogar Jórvík. Jarl é o modo completo, com o tabuleiro aberto e a área de docas. Enquanto Karl é o modo menor, com apenas metade do tabuleiro e a área de mercado. Mas qual o significado dessas palavras? Ambas se referem a posições na sociedade viking.
Comumente, a escala social viking se iniciava com o rei viking, controlador de uma província ou até mesmo uma área maior. Logo abaixo do rei, se encontravam os Jarls, a classe mais abastada (a aristocracia viking). Eles controlavam (eram chefes) normalmente uma vila ou agrupamento de vilas e possuíam influências junto ao rei e nas demais castas sociais.
Boa parte do núcleo comercial das vilas eram controladas e geridas por eles. Muitas vezes dominavam os navios e indicavam as rotas comerciais e produtos mais desejados. Seguindo para baixo, encontramos os Karls, representando a classe trabalhadora. Eram fazendeiros, artesãos e ferreiros. E, por fim, os Thralls, os escravos do mundo viking.
A nomenclatura utilizada além de sugestiva é interessante ao ser pensada. Uma vila menor, sem conexão com rios e de pessoas mais simples é a metade do tabuleiro (modo Karl, modo “trabalhador”). Enquanto a outra, é uma vila maior, com docas e fluxo intenso de mercadorias, com o tabuleiro aberto por completo (modo Jarl, modo aristocrata).
Dedos em riste: um jogo sem tema
Da mesma forma que vi conteúdos em vídeo e li comentários dando conta da ausência de tema em Trajan (ponto completamente fora da percepção necessária, podendo ser comprovado aqui) os apontamentos são de que Jórvík é um jogo sem temática.
Primeiramente, um jogo baseado em mecânica de negociações, mercado e leilões tende a se afastar de qualquer tema menos formal. Isso pela própria condição das ações serem mais voltadas aos outros jogadores do que ao tabuleiro em si.
Mas, em Jórvík é possível perceber, entender e enriquecer o tema proposto pelo designer. Esqueça os viking da moda, apague a mitologia da cabeça e entre nessa vila viking. Nesse dia a dia tenso de negociações, traições e ambições maiores do que as próprias moedas.
É sensível que o tema não pula aos olhos automaticamente, mas está ali, esperando para ser adorado, permeado. Entender todo o cenário que já passamos, faz o tabuleiro e as ações terem outro sentido, outra pegada.
Colocar o seu meeple na fila não é apenas um jeito de irritar o amigo, mas é um aumento do preço de mercado pela procura. É acordar na vila viking e ir comprar mercadorias. Imagine como eram agradáveis e nada tensos os papos em uma fila se empurrando para comprar as poucas unidades de pedras preciosas que chegaram.
É possível perceber o quanto a vila viking respira comércio e se alimenta de todo esse cenário. Alguns irão dizer: mas o jogo é apenas um redesign com um tema diferente. Sim, mas o tema poderia ser apenas Vikings. Mas não, Stefan Feld vai além, trás um cenário ao fundo, constrói uma cena que precisa ser analisada, entendida, apreciada. O tema está ali, trabalhado, com sentido, no manual, nas ações, na história por trás. Basta querer enxergar.
O jogo de tabuleiro e a vida viking
As ações do jogo tem uma interação bastante fidedigna com um mercado viking. É possível participar da tensão de um mercado recebendo produtos, ou, tentar ser o primeiro a garantir a chegada de um navio repleto de novidades. E as cartas contribuem para essa imersão.
Existem as cartas de artesão, representando a possibilidade de se contratar esse artesão e prestar serviços à sua família, sua casa. Existem as cartas de guerreiros, demonstrando o seu investimento em armas, armaduras e treinamento de soldados. Falando a verdade, no fundo todo bom viking tem uma tendência à batalha.
É possível ainda, adquirir as cartas de navios com mercadorias (essas variando entre ferro, lã, cristal, tecido e pedras preciosas). Isso é bastante significativo. Um viking que conseguia ter navios para buscar mercadorias, com certeza seria um viking com maior poder econômico e até mesmo social. Afinal iremos ser Jarls ou Karls?
Tudo isso sem se esquecer das cartas de banquete. O que seriam dos vikings sem os seus banquetes? Como tomariam as decisões mais lógicas e estratégicas sem hidromel? Complemento perfeito do designer e diga-se de passagem, no jogo, quanto mais cartas de banquete, melhor.
Ainda sobrou espaço para a inserção, quase em homenagem, da bela mitologia nórdica. Sim, estou falando das cartas que deixam tudo mais divertido e tenso: as cartas de Loki.
Enfim, as cartas do jogo se integram à temática de compras e trocas de intensidade de um mercado viking. É uma corrida e ao mesmo tempo, uma batalha estratégica chegar ao item desejado sem ter que desembolsar todas as suas moedas.
O ataque dos Pictos, quem?
De tempos em tempos o designer nos lembra da tensão vivida por Jórvík, ou York, naquela época: os ataques constantes dos Pictos. Mas quem são esses caras?
A história dos Pictos é recoberta por mistérios e dificuldades de se estabelecer um contexto correto. Alguns historiadores apontam para uma tribo selvagem descendente dos gauleses. Outros acreditam se tratar de uma ramificação independente.
Certo é que os Pictos eram uma ameaça dentro da Grã-Bretanha, sendo extremamente ferozes e impulsivos à batalha. Suas lutas iniciaram muito antes da chegada dos vikings à Northumbria. Combateram dos romanos aos vikings, e outros invasores (inclusive os próprios ingleses).
Habitavam a região atual da Escócia e acabaram por ser absorvidos pela nação escocesa em expansão. Suas representações mais conhecidas são de guerreiros que lutavam com pinturas corporais (fato aparente nas cartas do jogo). Alguém aí disse Coração Valente?
Considerações Finais
Como deu para perceber, retratar esse jogo como “sem tema” é uma grande injustiça ao designer. Abra a mente para enxergar vikings diferentes dos que só matam e saqueiam e de Deuses do trovão. Só assim vai entender a influência viking no tema escolhido. Ele está lá.
O tabuleiro transmite o sentimento de uma vila viking, tudo retratado na dinâmica do jogo, nas cartas, no tabuleiro e até mesmo no manual. Jórvík é uma cidade que respira comércio, disputas comerciais e que cresce nesse ambiente. É uma tensão constante entre os jogadores, na chegada imprevisível dos Pictos (assim como na realidade de outrora) e na dificuldade para adquirir o bem desejado.
É difícil ser um Jarl. São tantas responsabilidades e poderes que somente um bom gerenciamento de dinheiro e mercadorias pode resolver. É um belo jogo, com um tema único, em uma mecânica que tende a ser mais abstrata.
Imersão BG
Ficamos por aqui galera, nessa nossa coluna semanal. Lembrando que elogios, críticas e sugestões de jogos são sempre bem vindas. Deixe seu comentário, reforce aquele like.
E na próxima terça nos encontramos em um destino mais calmo, repleto de produções e uvas. Sim, eu disse uvas. Abraços!